Há caminhos inesquecíveis. Você pode evita-los, pode não pensar neles, desejar jamais percorrê-los, mas não se esquece. Uma determinada rua, uma cidade, um prédio, sejam ruas de verdade ou aquelas trilhadas na nossa personalidade, nas nossas fraquezas… Caminhos, lugares por onde passamos ou em alguns casos que jamais devíamos deixar de percorrer.
Ela sabia o caminho, sabia que no momento em que decidisse voltar não se perderia, não teria dúvidas. Uma trilha íngreme, um lugar escondido no meio da cidade, um pouco acima dos prédios, um lugar de vista espetacular, melhor que a ponta do prédio de Spiderman, mas chegar lá requer conhecimento, requer instinto e acima de tudo muita coragem.
A dor é insuportável, não mais do que as dúvidas, do que os pensamentos atordoantes. Ela sabe que não vai ouvir muito, sabe que encarar aquele olhar será a mais insuportável situação… Acha que sabe tantas coisas !
Enquanto percorre o caminho relembra momentos de uma vida que nem parece mais dela, aquela moça sorrindo, aqueles sonhos antes de dormir, aquela paz, a impressão é que nunca havia vivido aquilo. Somente percorre aquele caminho com algo nos braços e um discurso na ponta da língua. As pessoas se afastam quando ela passa, a julgam, a evitam, outras dão uma esmola de lição de moral… E ela pensa “ Será que pra chegar lá tenho mesmo que conviver com estas pessoas?” Pensa em voltar, pensa em ficar olhando ao longe, pensa só em ouvir atrás da porta…Porém a porta está sempre aberta , não dá pra não ser visto. E na madrugada de um dia agonizante ela sobe a última escada de incêndio , olha aquele velho galpão num telhado esquecido em algum lugar do universo. A fresta da porta deixa ver a luz acesa e umas risadas indicam que há algumas pessoas ali. Pessoas !!! Ah não!!! Ela encosta na parede e respira ofegante, não sente mais os braços, sua boca está seca e uma vontade de chorar chega a dar nó na garganta, então ela abraça seu embrulho e chora… Sabe que não será fácil e que não tem razão nenhuma, não haverá justificativas, nem conversa, enquanto ela se recupera , as risadas cessam, a porta está mais aberta e ela percebe que é o momento. Fica de pé, recupera o emocional e vai até a porta.
Ela vê aquele laboratório, tudo funcionando freneticamente. A bancada onde por vezes ela riu, brincou, chorou…Nada parecia ter mudado, se não a cor das cortinas. E pra dar o primeiro passo?E pra conseguir entrar ali, se não era bem vinda… Foi quando sentiu alguém ao seu lado:
– Melhor entrar, está frio aqui fora.
Ela não disse nada, estava arredia, entrou devagar, não tocou em nada, mas quando viu aquela pessoa debruçada num microscópio, sentiu seu coração no ouvido. Ele veio até ela deslizando com sua cadeira e parou encostado na bancada. Aqueles olhos, aquele jeito de mexer na barba, parecia bravo. Muito sério. Ela sentiu vontade de sumir dali, sabia que não era uma boa idéia, ela havia passado de todos os limites , foi quando ele virou-se e pegou duas xícaras de chá, “ Melissa bem docinho…Já está quase frio, você demorou pra entrar, tome!”- Atitudes de amor, elas desmontam, elas tem o poder de modificar o universo. Ela não podia pegar a xícara, suas mãos estavam ocupadas. Em toda sua inferioridade não sabia como dizer tudo que estava em nó na sua garganta: “Melissa é o seu preferido não?” – Ela confirmou com a cabeça enquanto ele se levantou e foi pra bem perto dela:
“ Não quer o chá?”- Ela tinha que falar, precisava …Foi quando aquele rapaz entrou pelo laboratório todo animado, e tocando os ombros dos dois, formando um elo, disse:
– Você não quer retirar este casaco? Se não quer o chá Papai fez também umas coisas preferidas pra comer e pra que você não se preocupe fez até uma mamadeira !
Pela primeira vez em alguns anos, sentiu um calor de bem estar percorrer seu corpo, sentiu o nó de sua garganta se desfazendo e percebeu que não era ela quem era a sábia ali:
– Vim trazê-lo ! E mostrou um bebezinho embrulhado em trapos, e que em sua exaustão ia coloca-lo na bancada quando rapaz disse:
– Dá ele aqui ! Vou trocar estas roupas e posso dar um banho?
Ela balançou a cabeça e olhou fixamente para aquele que estava diante dela, pegou o chá e se sentou:
– Ele enlouquece com crianças, tem um cuidado com elas !- E sem mais rodeios , antes que sua coragem se fosse:
– Me perdoe, por favor, Pai ! – Existem palavras que são como flores ao vento, orvalho pela manhã…Ele parou, deixou o copo de chá, seus olhos encheram de lágrimas e abriu os braços que acolheram a humanidade : – Sim, eu perdôo !
O abraço não aconteceu, porque ela tirou o casaco e ali estava um corpo mutilado, chagas, deformidade, sangramentos e ela caiu num choro dolorido, choro de quem abafa a dor por muito tempo. O Pai segurou em suas mãos e disse :
– Eu posso curar isto! E chorou mais ainda, e abafou seu choro naquele avental branquinho. E o Pai sorriu, sorriu porque ela chorava no ombro certo, no lugar certo. O rapaz voltou com o bebê e com uns remédios, começaram uns curativos enquanto discutiam com quem ele se parecia e então ela não quis adormecer pra não perder aquela cena, mas o cansaço foi maior e ela foi adormecendo e fechando os olhos diante daquilo que ela sempre sonhou… O Pai embalando seu bebezinho e contando pra ele aquelas velhas histórias sobresua criação do mundo.